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Textos / Ligia Canongia, 2004

Niura Bellavinha – O real como pintura

 

As cores são os verdadeiros habitantes do espaço.

Yves Klein

  

           O fundamento do trabalho de Niura Bellavinha será sempre a pintura, que é a sua linguagem por excelência. É a cor o elemento primordial; a cor como estrutura do espaço, mesmo quando tornada líquida ou aérea. Se estamos, portanto, diante de uma performance da artista, o tônus da obra certamente ainda residirá na cor, assim como esta permanecerá a questão de outros trabalhos que se debruçam no campo tridimensional.     

 

Há muito que a pintura não se esgota nos domínios da tela, a tal ponto de certas experiências contemporâneas terem estendido o conceito pictórico à pura aplicação cromática sobre qualquer matéria, e da cor poder se apresentar como entidade autônoma no espaço. Os Relevos Espaciais de Hélio Oiticica, já embrionários em seus Metaesquemas e nas pinturas suprematistas, concretizaram no Brasil essa “espacialização” da cor, desde 1959.

 

Também é pertinente nesse comentário lembrar que Jackson Pollock, através da pintura, tornou-se historicamente o “pai” da performance. O uso corporal do artista sobre suas longas superfícies estiradas ao chão deu margem a se conceber uma ação no espaço real, a partir de uma ação de pintura (action painting). Assim, desde o final dos anos 1940, já se podia antever práticas que desembocariam nas performances, e mesmo nos happenings, com e através de experiências advindas, originalmente, do mundo da cor. 

 

A performance A Medida do Impossível de Niura Bellavinha, porém, faz remissão ao universo da pintura, não apenas através da presença protagonista da cor. A ação performática inicia-se em um espaço totalmente branco, em que o chão é tratado como a superfície da mesa de uma natureza-morta. Ali, sobre esse chão-mesa, empilham-se colunas de pratos brancos, imersos na quietude de um espaço silencioso e estático.

 

A natureza-morta é um gênero pictórico que sempre primou pela imobilidade da imagem, impermeável à narrativa, à idéia de continuidade e à retórica de ordem afetiva ou simbolista, o que acabou lhe conferindo sinais de modernidade. Nela, não se podia detectar conteúdos de natureza psicológica, nem exaltações heróicas ou míticas, deixando, pela primeira vez, que a abordagem se fizesse pelo puro viés das qualidades da pintura. E, sem dúvida, seu caráter estático contribuiu para a isenção desse novo olhar.

Mas, se a performance de Niura começa impassível na pureza do branco e na estagnação do tempo, logo é “acionada” pela entrada em cena de cinco performers, mulheres e nuas. Com lentidão e cautela, elas passam a distribuir os pratos brancos sobre a grande extensão do chão branco, como quem “põe a mesa”, e como o pintor que, diante da tela em branco, rascunha os primeiros esboços de linhas onde a cor será posteriormente acrescida. É como se elas estivessem delineando a composição do “desenho” da natureza-morta, ainda sem vivacidade cromática. Só que a qualidade anímica da obra já está em processo; primeiro, pela ação em tempo real que a própria performance desencadeia, e depois, pela cor da pele humana, que já é fator dinâmico a ruminar na surdina do branco. Nesse momento, Niura Bellavinha, que inclui entre suas performers uma negra, faz menção direta à tela Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, obra crucial na instituição do cubismo. E sabemos o quão importante foi para os cubistas a dimensão do tempo, a questão do dinamismo espacial, além de sua enorme contribuição para a saída efetiva da pintura para o espaço real, através das colagens. Nesse aspecto, o cubismo é pólo antagônico da tradição da natureza-morta. A Medida do Impossível sai, portanto, de sua referência pictórica primeira (a natureza-morta) e passa a aludir a um segundo momento histórico, moderno (a tela cubista), em que a fragmentação do espaço-tempo se traduz em movimento.

 

É curioso, entretanto, pensarmos que a ação da performance de Niura se dá em tempo lentíssimo, quase um slow motion cinematográfico, e que as mulheres trabalham de forma a não quebrar a louça, a não fragmentar. Seria, assim, o reconhecimento da ação, do movimento vivaz e seu desenrolar no tempo, mas ao avesso do processo cubista, relutando em aderir à sua velocidade. Ademais, poderia ser inútil buscar essa adesão, já que estamos in loco, de corpo presente, podendo acessar diretamente vários pontos de vista na percepção do espaço, coisa que os cubistas tentavam apenas representar. Sem dúvida, o cubismo não é mais representação da figura, mas é representação do tempo, isto é, da figura em tempo. No cubismo analítico, por exemplo, com suas múltiplas perspectivas exibidas em simultaneidade, subentende-se não propriamente um movimento, mas um quase-vôo, de rapidez ágil o suficiente para abranger todas as miradas. É uma representação do tempo tão exaltada, que se torna impossível, senão ideal. O tempo no seu escoar natural é outro, e isso temos ao vivo na performance.      

 

O segundo momento do trabalho, aquele que nos dá com evidência mais imediata a referência ao mundo da pintura, é quando as performers, após preencher completamente o chão de pratos, recolhem de pequenos sacos (dispostos na fronteira entre o chão-mesa e os espectadores) o pigmento vermelho puro com as mãos. Começam então a soprar o pigmento sobre o ambiente, buscando impregnar chão, pratos, paredes e seu próprio corpo com a cor. A poeira vermelha é tão intensa, e deposita-se com tal morosidade, que o próprio ar parece se colorir. A arquitetura local, a louça e mesmo os corpos tornam-se por vezes invisíveis, restando a nuvem vermelha a pairar sobre tudo. E, ao embaçar a visão dos objetos reais, o pigmento solto no ar assume o estatuto da tela abstrata, principalmente aquela da abstração informal, de cuja filiação descende a pintura propriamente dita de Niura Bellavinha. A ação performática acaba assim por descrever também o movimento dentro da própria história da arte. Só que, ao caráter líquido das telas da artista, substitui-se a natureza aérea da cor na performance, como se Bellavinha buscasse sempre compensar a intensidade cromática com a rarefação da matéria, quer num meio, quer no outro.

 

As mulheres deitam-se então sobre os pratos, fazem evoluções corporais neste chão já inteiramente vermelho, “desenhando” o corpo com marcas aleatórias, que poderiam ainda nos reportar às pinturas corporais do índio brasileiro, feitas com urucum. E poderiam certamente nos levar às ações monocromáticas de Yves Klein, em especial suas Anthropométries de l’époque bleu. A primeira apresentação pública de uma Antropometria ocorreu em março de 1960, em Paris, quando Klein colocou três modelos nuas dentro de uma galeria, acompanhadas de uma pequena orquestra, que tocava sua composição Symphonie Monoton.  A música, composta de um único tom, era ouvida durante vinte minutos, seguida por outros vinte de silêncio. E nos quarenta minutos de duração, as modelos eram impregnadas de tinta de uma só cor, azul, imprimindo depois seus corpos sobre folhas de papel dispostas ao chão e nas paredes. A performance de Klein, ligada à idéia de pintar com “pincéis vivos”, era conseqüência lógica de sua vontade de trazer o mundo imaterial da cor para a esfera do real, o que já o fizera imprimir suas mãos sobre suas camisas, e culminar no projeto de iluminar de azul o Obelisco da Place de la Concorde.¹

 

Paralela e paradoxalmente a essa impregnação cromática do mundo material (corpos, objetos e monumentos), estava o pensamento de Yves Klein, para quem a cor, em especial o azul, era a própria sublimação da carne e da matéria, energia viva, capaz de sugerir a sensação de uma extensão infinita. Assim, nas Antropometrias, ele fez equivaler a imaterialidade da cor à imaterialidade da música, buscando uma expansão sem forma e sem limite, ainda que com e através do corpo humano. A monocromia seria, segundo Klein, o semelhante pictural do vazio. Dizia ele:

 

“Nós nos tornaremos homens aéreos, conheceremos a força de atração em direção ao alto, ao espaço, ao vazio, e tudo ao mesmo tempo”.²

 

Se pensarmos na suspensão do pó vermelho na performance de Niura Bellavinha, no tempo em que a cor, na sua fugaz permanência aérea, parece banhar o mundo de energia; se pensarmos a cor como essa matéria-espaço, simultaneamente abstrata e real, somos levados a imaginar essa nova força gravitacional de que nos fala Klein, que não mais nos impulsionaria para o chão, mas para outros espaços, mais fluidos e, para ele, mais espirituais.

 

Diferente do artista francês, no entanto, Bellavinha não tem a mesma visão cósmica, e não pensa a monocromia como instrumento de elevação apenas espiritual, capaz de nos fazer “sentir a alma”. ³  A própria opção de cor é significativa. Para a artista brasileira, a sensualidade da cor traduz-se em energia erótica, ligada ao corpo mesmo, à terra, daí o chão ser um palco estruturante da obra e não apenas um suporte ambiental. Assim, o vazio atemporal do “azul Yves Klein”, que pressupõe a ausência de toda limitação física, é substituído pelo vermelho, cujas ressonâncias não se desprendem da idéia da carne. Se, por um lado, a cor é pura percepção, fenômeno ótico, por outro, está ancorada nas coisas do mundo, movendo instâncias sensoriais. A performance, ao menos em ato, no tempo de sua duração, não é imagem, é coisa. E o vermelho de Niura supõe, mesmo em estado aéreo, enquanto poeira de cor, a sua ambivalência de espaço, mas espaço fadado a “incorporar”.

 

A elevação mental, que se desprende inteiramente da materialidade, não parece ser o centro do trabalho de Niura Bellavinha, mesmo nas pinturas que se apresentam de forma escorrida, lavadas por jatos de água ou pressão de ar, procedimentos que lhe são usuais. Antes, parece-nos uma investigação de campos diferenciados de matéria, ou de luz, mais ou menos intensos, como se a explicitar a passagem de áreas liquefeitas a outras, saturadas. Da mesma forma, na performance, ainda é a passagem que interessa, a passagem material de um estado físico a outro, do ar ao chão, da cor abstrata à cor incorporada, assim como do branco ao vermelho, e do pó ao corpo. Não sem motivos, na série das pinturas vermelhas de 2001, denominadas Sabarás, a artista fala da memória do vermelho no ferro de sua terra natal, Minas Gerais, e no próprio fato do pigmento vermelho ser constituído de matéria do ferro. Existe, portanto, uma “terra” nessa cor, que pode ser “minada” ou expulsa em estados provisórios de suspensão ou liquefação, mas que, provavelmente, retornará com sua dupla face: da transparência à opacidade. Nas pinturas, que acreditamos mais próximas das paisagens, “chove”, deixando aparentes campos translúcidos e outros densos.

 

         Em A Medida do Impossível, também há momentos sensacionais de passagem, em movimento real, mas quando a ação se completa e o vermelho se deposita completamente, parece haver de volta uma terra firme, uma imaginária terra firme, que se reconstitui em natureza-morta. A ação retorna ao ponto de inércia, o tempo novamente se congela, e a cena estabiliza-se na vermelhidão total da imagem, unificando espaço e coisas, como no Atelier Rouge, de Matisse. 

Ligia Canongia

junho de 2004

Notas

1- A realização concreta desse projeto só aconteceu postumamente, em 1983, tendo o artista falecido em 1962.

2, 3 - KLEIN, Yves – citado por WEITEMEIER, Hannah in “Yves Klein”, Taschen, Colônia, 1995.  

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