Textos / Paulo Herkenhoff , Nova York, Fevereiro de 200I
NIURA BELLAVINHA, PINTURA COM SANGUE DE ESTRELAS
Uma visita ao ateliê de Niura Bellavinha é imergir em cor. As paredes estão tomadas por imensas telas vermelhas e o chão foi impregnado de pigmento encarnado, caído na faina pictórica. Parece que a pintura baixou ao mundo, assoalho abaixo, como tapete de cor. Sobre a mesa, sacos de puríssimos pigmentos vermelhos, carmins, laranjas, rosa avivam etapa primordial do processo pictórico para celebrar a cor. Reivindicam serem as sementes para Chorar Pitangas. À primeira vista parece que um filtro vermelho teria dominado o olhar em brasa. A temperatura cromática do ambiente está à flor da pele. O olhar está acometido daquela febre que se experimenta ao mergulhar na instalação Rio Vermelho, de Katie van Scherpenberg, ou navegar pelo Desvio para o Vermelho, de Cildo Meireles. Ou ainda penetrar as entranhas do Cubocor, de Aluísio Carvão. Ou, finalmente, parece reiterar que o mundo é o grande monocromo instaurado por Matisse em seu Atelier Rouge.
Esse grupo de grandes pinturas intensamente vermelhas são os Sabarás, com os quais Bellavinha propicia um mergulho num ambiente cromático, que pode aludir à igreja de Nossa Senhora do Ó, de Sabará, em Minas Gerais. Para Gerrnain Bazin, em seu livro L'Architecture Religieuse Baroque au Brésíl, essa capela de Sabará, pela rica decoração em painéis de madeira e ouro imitando laca chinesa, está entre os mais belos monumentos do barroco mineiro.1 O gosto colonial pelo suntuoso, arrimado no luxo asiático das lacas chinesas com seus vermelhos e dourados, se esconde nas Minas Gerais, em Sabará e Mariana.
"Meu pai me apresentou esta raridade [a igrejinha do ó, de Sabará] quando eu tinha 9 anos, e na ocasião não a enxerguei. Alguns anos após sua morte fui buscando reatar uns elos perdidos e fiquei paralisada diante daquilo tudo que fui encontrando", assim Niura Bellavinha rememora seu encontro com as "chinesices" no barroco de Minas Gerais.2 A Sabará de Niura Bellavinha é cidade - como Zaira entre as Cidades invisíveis de ltalo Calvino - que consiste das relações entre as medidas de seu espaço e os eventos de seu passado "a cidade, no entanto, não conta seu passado, mas o contém entre as linhas da mão".
No período colonial, como ocorreu inicialmente nas cidades costeiras (na Bahia e no Rio de Janeiro), as ordens religiosas faziam circular informações estéticas entre os continentes. Missionários que estiveram na Ásia antes de vir para a América portuguesa fundaram uma China brasileira.3 A "chinesice" de Niura Bellavinha é de certa ordem. É sonho de mineradora. Flutua entre valores plásticos abstratos e encantamento pessoal da memória, articula informação mais como dado histórico que como ícone, reduz informações visuais à condição física. Assim, uma porta de laca chinesa de Macau será espaço vermelho.
Diz Niura Bellavinha que a série Sabarás faz referências à porta em laca proveniente de Macau, insta lada na igreja setecentista de Nossa Senhora da Conceição, em Sabará, depois imitada por um artista vernacular na capela de Nossa Senhora do 6, na mesma cidade. 8n suas próprias palavras, encontram-se outros fatos que a fascinam, além da estética, em tomo da dita Porta de Macau: "é uma das duas portas que se encontram entre a Capela Mór e a Sacristia da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Sabará, Minas Gerais. Estão colocadas uma em frente à outra. A porta que fica à direita pode ter sido confeccionada por um artesão provindo da possessão portuguesa na Ásia. E a porta da esquerda é visivelmente uma cópia, por um artesão local de habilidade rude. Mas os papéis com referências à sua origem foram destruídos em um incêndio. Segundo a tradição oral, a instituição da paróquia foi em 1 701, e até 1 71 4 ainda se encontrava em construção. Além disso, a Porta de Macau pode ser considerada uma das primeiras peças do barroco com influência chinesa."4
Sabará nas Sabarás é uma "cidade invisível", devolvida como pintura ao olhar. Niura Bellavinha não alude à sua topografia nem ao risco específico das construções da cidade. No entanto, a artista reivindica que sua pintura seja vista numa dimensão que incorpore a vida urbana: "Essa transposição dos signos do Oriente para Minas Gerais, a miscigenação, a constituição urbana de Sabará e Ouro Preto, que eram duas metr6poles no século XVII, são considerações significativas para o meu trabalho.''5 Nesse ponto, Bellavinha resgata esse barroco do rol rural, da cor "caipira”, com que foi até aqui historicamente apropriado pela perspectiva geopolítica de certa crítica, com o objetivo de estabelecer uma regência da sensibilidade cromática no Brasil, através de um modelo unificado e autoritário, formulado a partir do vernáculo do interior do estado de São Paulo. A obra de Bellavinha está entre as que demonstram a fragilidade e o déficit dessa persistente interpretação. Assim como no discurso de Riobaldo e de outros personagens de Guimaraes Rosa ocorre a dicção de um Dante e de outros grandes da literatura ocidental, o chavão "caipira" não daria conta do complexo plano visual da cultura barroca.6 Por outro lado, os pigmentos usados na pintura de Bellavinha tem pregnancia histórica específica. A insistência na composição ferrosa dos vermelhos aponta para a hist6ria econ6mica de Minas Gerais, enquanto seu uso da laca da China trata das trocas culturais como Oriente.
Ainda que se referindo a composição do vermelho e do sangue - e salvo uma analogia de teor orgânico - a pintura de Niura Bellavinha não seria "carnagao". Não tem o caráter de simulação como fazia o artista barroco através da a posição de uma superfície de "came" sobre a escultura de madeira "no nossa", nem mesmo qualquer sentido de representação. Ao contrário, Bellavinha "descarna" a pintura ao trabalhar com a carne-sangue e, de modo algum, alude ao sangue como imagem. 0 imaginário barroco na arte de Bellavinha indaga como as reflexões de Clarice Lispector na crônica "Uma porta abstrata" sabre o real e a instancia abstrata: " Sob certo ponto de vista, considero fazer coisas abstratas como o menos literário.
Certas páginas, vazias de acontecimento, me dão a sensação de estar tocando na própria coisa, e é a maior sinceridade. E como se eu esculpisse - qual é a mais verdadeira escultura de um corpo? 0 corpo, a forma do corpo, a expressão da própria forma do corpo - e não a expressão 'dada' ao corpo.7
Outra artista contemporânea, Adriana Varejão, tem trabalhado, como Bellavinha, sobre a tradição das trocas culturais entre o Ocidente e o Oriente como uma questão da origem do olhar e da cultura visual no Brasil. São pintoras que desenvolvem uma obra singular, complementares em sua extrema diferença. Varejão articula imagens da história da arte para constituir uma possibilidade crítica para a compreensão política do presente. Sua obra Passagem de Macau a Vila Rica cria uma narrativa horizontal, como nos rolos orientais. Faz menção à louça de Macau e ao sentimento barroco no coração sangrante em laca. Algumas igrejas brasileiras situam-se na paisagem chinesa das montanhas de Minas Gerais convertidas em penhascos. Sabia que Guignard, sonhador dessa China, riscou perspectiva vertical. Na rota de Macau a Vila Rica, Varejão indica como o inerário mental do homem parecia apreender o mundo como totalidade na rota dos navegadores, comerciantes e missionários.
O barroco, para Niura Bellavinha, não está necessariamente aprisionado por projeções axiológicas como irracionalista ou antimoderno, como queria Clement Greenberg, B mas como esse campo de possibilidades vivas para a cultura brasileira moderna, desde a arquitetura de Oscar Niemeyer à arte de Lygia Clark. Da infância, a artista relembra sua percepção pessoal da obra do Aleijadinho, como a visão na infância dos profetas do adro do Matozinhos flutuando neblina que havia baixado sobre o morro. O barroco de Niura Bellavinha não se constrói com iconografia ou por jogos de aparências, por nenhuma ideia formal, nem mesmo por curvas e sinuosidades. Quando fala de sua experiência desde a infância com o barroco, a artista trata mais de sua memória dos monumentos do que da patologia das imagens. Difícil pensar no Giles Deleuze de A Dobra, Leibniz e o Barroco. Isso implica em compreender que as dobras da alma, inexistentes nos Sabarás, indicam que Bellavinha não está operando com formas barrocas de afirmação do sujeito. Reservando aquela sua experiência do sublime da visão dos profetas, Bellavinha faz sua outra palavra de Lispector: "Se eu desenhar num papel, minuciosamente, uma porta, e se eu não lhe acrescentar nada de meu, estarei desenhando muito objetivamente uma porta abstrata."9
À primeira vista, chama a atenção a dimensão arquitetônica de suas pinturas. Nos Sabarás, as pinceladas são largas, por vezes espessas, sempre firmes, vigorosas, sobretudo verticais. Mais que o pulso, testemunham o tônus muscular da pintora. O corpo formula a pintura. Existe aqui uma determinação corporal na direção e dimensão dessas pinceladas edificadoras de arquitetura. Sendo mais extensas que nos desenhos de Amílcar de Castro, as pinceladas na pintura de Bellavinha se definem claramente pelo partido arquitetônico, contraposto à intenção gráfica da obra desse escultor. As suas são decisões de engenharia. Os Sabarás oferecem um mergulho na cor, como espaço arquitetônico dimensionado para o espectador. Surgem numa cultura que produziu obras como os Núcleos, de Hélio Oiticica. São um penetrável a ser percorrido com os olhos. Cada pincelada de Bellavinha se instala no campo visual com a firmeza de uma coluna sustentando o olhar na construção do monumento. São os marcos mínimos da "porta abstrata" de Bellavinha. Aí, entre as pinceladas, o olhar encontra passagens. São as aberturas na topografia do quadro, construídas pela ausência ou rarefação de matéria. São brechas por onde o olhar penetra e se expande, atravessando a colunada. Tais portas, algumas feitas de transparência, talvez sejam hiatos no tempo. São fissuras na memória. São suas alusões à Porta de Macau do anônimo e da sua infância.
Na pintura de Niura Bellavinha, o vermelho sanguíneo não corresponde a qualquer escorrimento, ferida ou mutilação. Essa pintura também não tem o páthos das figuras sacras de Guignard. Se o sangue constitui o exemplo edificante no barroco e em sua reapropriação por Guignard, seria consistente afirmar que para Bellavinha é puro fluxo vital e vivo. É elemento de composição física, destituído de carga emocional e construção simbólica. É puro acontecimento visual. Difere de muitas outras apropriações contemporâneas de Guignard, em que qualquer pintura verde ou com água do escorrido seria a simplista referência a este artista. Já a obra de Adriana Varejão tem se desenvolvido com a problematização da patologia do barroco. Sua apropriação e inversão de elementos estilísticos e retóricos do barroco não admitiriam que se reduzisse sua pintura à ideia de citacibnismo. O que se consolida é uma espessura da história nessas imagens como possibilidade de constituição de um olhar crítico sobre o presente. 10A consciência matérica na obra de Niura Bellavinha evoca o fato de que a pintura de Guignard ser extremamente espessa quando ele chega ao Brasil, sobretudo nos anos 30. A carga pictórica, o tratamento da matéria pastosa por Guignard, nesse período, não deixava prenunciar a delicada pintura fluida e rala, quase uma aquarela das décadas seguintes. Poucos anos antes de se mudar para Minas Gerais, as paisagens de Itatiaia pintadas por Guignard, no começo dos anos 40, representam o topo de montanhas, céu e fenómenos meteorológicos. Tudo parece ter a mesma consistência diáfana. Desde então, o imaginário de Guignard parece buscar as alturas, construindo seus topos como mundo em suspensão: nuvens e neblina, fumaça do trenzinho, balões de festa de São João, uso da perspectiva vertical como na arte chinesa. Equívoco pensar que no universo de Guignard ocorressem chuva ou mesmo a mais leve garoa, fenómenos de precipitação da água entregues à gravidade. Entre as obras de Guignard que Niura Bellavinha aprecia em especial estão as obras de Itatiaia e as Paisagens Imaginantes, de 1961.
Se na construção do sublime na pintura de Guignard tudo sobe, tudo flutua, também o barroco conflui para esse olhar, apesar de suas formas muitas vezes tidas como "pesadas". Trata-se aqui do barroco como forma argumentativa no processo da Contrarreforma. O monumento barroco significou, sobretudo na Europa, a perfeita metáfora da necessidade de mediação pela Igreja Católica entre os homens e Deus.11 As colunas salomónicas do templo barroco elevavam o olhar
do chão ao teto. A única coisa que cai-talvez nada mais desça na obra de Guignard -é o sangue que escorre, seja o sangue redentor do Cristo flagelado ou crucificado, ou o sangue mártir de São Sebastião, dois exemplos edificantes também eficientes na retórica do barroco.12Niura está mais próxima dessa ideia de matéria em descenso com os sacos de pigmento pendentes de Chorar Pitanga, o copioso lavamento no método dos Sabarás e, finalmente, a matéria cadente de meteoros nas Pinturas Translúcidas.
Se a pintura de Bellavinha, em algum momento, pudesse parecer evocar o Guignard da matéria em suspensão, seria porque sua pintura se faz com lavadas, o que introduz a ideia de rarefação da matéria. Guignard é para Bellavinha aquele mesmo pintor de todos - o da suspensão da matéria - mas também é aquele pintor de poucos - o da precipitação da matéria, como sangue escorrido dos santos e Cristas. Diferentemente de sua Ouro Preto, as paisagens de Sabará de Guignard se espraiam pelo horizonte, não são verticais. Perceber a pintura de Guignard como uma pintura construída por forças físicas opostas abre para a possibilidade de enfrentar a coexistência de movi mentos antagônicos ou de pontos de vista diversos. Daí a pintura de Bellavinha conferir esse forte caráter de lugar à superfície dos Sabarás. Entre movimentos ambivalentes, a obra se fixa nessa arquitetura de colunas, como estacas que demarcam o aqui. A aproximação seria através da fenomenologia do espaço constituído em sua pintura. Bellavinha parece evocar Barnett Newman e sua inquietação sobre a pintura, o corpo e a percepção. Nesse ponto, o processo de percepção recorre à verticalidade como referência- nem queda de anjo ou de meteoro, nem suspensão sublimada do olhar barroco. A pintura de Niura Bellavinha, escapando do geometrismo e da metafísica da forma, busca alguma estabilidade possível para o olhar.
No século XX, ocorreu um trânsito artístico entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais nas artes visuais. Provenientes do Rio, Oscar Niemeyer e Portinari, na Pampulha, ou Guignard, no ensino da arte, consolidam a vocação moderna em Minas Gerais. Os mineiros Lygia Clark e Amílcar de Castro encontram no ambiente carioca as condições para formulação de uma obra dentro do processo e premissas que se formulam no neoconcretismo, do qual são agentes fundamentais. 13 Nesse arco histórico, passa de Sabará aos 86/ides de Oiticica através da pintura de Bellavinha. O monumento barroco entranhado nas montanhas de Minas, que no século XX revertia em pintura de Guignard, retoma ao litoral nos Sabarás e na forma simbólica de "pitanga", que sendo arbusto rasteiro próprio de solo arenoso litorâneo, toma-se metáfora da chegada ao Rio de Janeiro, como acesso ao litoral e à outra luz.
Em Chorar Pitangas, Niura Bellavinha recupera os sacos de pigmentos vazios, organizando-os verticalmente em ordens. Converte em arte os restos das embalagens da cor perdida. A artista inflige aos dejetos de seu trabalho como pintora algo como um destino último, cumpre com sua parte na realização da sentença escatológica: toda matéria do mundo na mão de um artista pode se converter em arte. As cores, sempre quentes, resultam da impregnação do pigmento que se conteve nos sacos plásticos. São como cachos intensamente vermelhos de fruta madura. Bellavinha se apropria da expressão popular, "chorar pitanga", que passa a designar chorar lágrimas vermelhas, de sangue. Tem algo do caudal encarnado que escorre com a lavadura a jato d'água das telas dos Sabarás. "A ideia é fazer essa cascata, essa estrutura vinda do teta ao chão", diz a artista.14 "Chorar pitangas" é pedir insistentemente, lamuriando-se, algo que é negado, ou, no caso da obra de Bellavinha, algo que já não existe a não ser como memória e resíduo de pura cor.
A cor desses pigmentos, em sua virgindade, indica como a paleta de Sabarás, ainda que pondo em marcha a consciência do barroco, tem o olhar nas gamas tórridas, quentes, estridentes dos Núcleos (1960), de Hélio Oiticica. Em sua crueza, pertence à ordem radical dos Bólides, do mesmo Oiticica, etapa de sua arte enquanto aventura da cor. Nos Bólides, a cor encontra seu corpo para se entregar a múltiplos jogos de percepção, como o tato e olfato. O material de que se compõe Chorar Pitangas pode evocar mais precisamente o Oiticica do Bólide Caixa 18 Homenagem a Cara de Cavalo (1966). Nessa obra, o saco vermelho de puro pigmento é alegoria da exclusão social e violência da ordem, através do corpo do marginal morto pela polícia, reduzi do à mesma condição de "lama viva" que o Mineirinho, outro assaltante, na crônica de Clarice Lispector. A radical obra de Oiticica se constitui em monumento ético da arte brasileira e ponto extremo da pintura na arte ocidental. Como um Bólide, a questão de Chorar Pitangas, no entanto, permanece pictorial. Nesse sentido, a obra seria primordialmente uma espécie de pintura seca, ademais sem pincel, de absoluta economia no método.
'Parto de uma massa densa de tinta e depois vou abrindo sulcos com jato de água ou de ar comprimido. Acabo trabalhando ao contrário da tradição da pintura, porque vou retirando a pintura que ali está", esclarece a artista, "a minha história era reduzir. Não cromaticamente, mas na matéria.15 A tentação é dizer que Niura Bellavinha não pinta o "vermelho". Parece não investigar uma cor. A tentação seria mesmo afirmar que o universo dos Sabarás não é um monocromático, porque não há nem mesmo referência a uma paleta de onde pudesse eleger ou deduzir uma cor regente.
A pintora não usa tinta branca. O branco que surge é luz originária da tela. A saturação de dados pigmentos sob a ação da água faz emergir veios azuis, como artérias visíveis sob a pele. No entanto, Niura Bellavinha reitera com veemência que 'o vermelho vem do ferro', para depois arrematar
dizendo que o ferro, por sua vez, é parte da composição do sangue. O que se vê, portanto, encarnado nesse ateliê não é o vermelho, mas ferro. Porque a artista fala da matéria do mundo mais que da cor. Sua pintura, em termos físicos, se põe na família mineral da escultura de Amílcar de Castro e na pintura de certos Daniel Senise e José Bechara, justamente artistas com os quais não tem qualquer relação formal. Em sua pintura, o que corre alude a sangue e seu veículo poderia ser uma espécie de plasma. Essa matéria - pigmento e sangue - pode ser ainda minério. A hematita e a especularita, misturadas ao pó de meteoro, contêm elementos ferrosos. Etimologicamente, hematita e hemácias estão vinculadas pela raiz vinculada ao ferro.
Nessa exposição do Museu de Arte Moderna, Niura Bellavinha mostra três conjuntos de obras (Sabarás, Pinturas Translúcidas e Chorar Pitangas), nos quais opera com um senso de arquitetura, revelado em múltiplas soluções construtivas. A tridimensionalidade da pintura está para além da transparência, elemento formulador da topografia da imagem como território a ser penetrado pelo olhar. Nos Sabarás, o campo pictórico ganha outro sentido como espaço tridimensional através do folheamento do plano a ser pintado. Grosso modo, a ideia de folheamento do plano está na véspera do neoconcretismo nos Contra-relevos de Lygia Clark e nos Bilaterais e Relevos Espaciais de Hélio Oiticica, ou nos buracos negros nos desenhos de Anna Maria Maiolino, na década de 70. Nesta tradição, a pintura de Bellavinha se singulariza na instância dos procedimentos ao sobrepor duas telas que são trabalhadas simultaneamente através dos mesmos atos pictóricos. Por consequência, os Sabarás devem ser expostos aos pares- desfolhados - não como dípticos, mas lado a lado, como duplos infiéis.
As Pinturas Translúcidas de Bellavinha atingem o caráter de construção de espaços tridimensionais, podendo chegar a ser um verdadeiro cómodo quadrilátero formado por telas de seda trans parente, como em Alma. A transparência e aberturas permitem à artista incorporar o espaço atrás da tela à estrutura da obra, como a imagem velada que se vê em Ele Passou, ou o espaço da escritura entrevisto em Alma.
Por sua vez, Chorar Pitangas é um conjunto de sacos de plástico vazios, usados para pigmento. Os sacos estão intensamente impregnados pela cor como memória da vasilha que um dia conteve o pó primordial do pigmento antes de sua dispersão nas telas no processo pictórico.
Os Sabarás implicaram no desenvolvimento de um processo que compreende duas telas super postas, a serem pintadas simultaneamente. Bellavinha pinta diretamente sobre a primeira, que deixa filtrar cor para a segunda. A tela de cima é, pois, pintada à vista, como ouro de aluvião. A segunda tela seria uma espécie de "pintura cega", posto que estando sob a primeira, dela reco lhe os excessos, o não absorvido e o que se filtra. Se a primeira tela é a superfície visível, a segunda seria uma camada geológica explicada por um olhar estratigráfico. A tela de trás é uma memória, tem algo que está enterrado sob uma camada geológica (a primeira tela}, como o ouro de subsolo.
As pinturas "por detrás" - a segunda tela - não são fantasmas, espelhamentos ou reprodução da primeira. Nelas há um jogo econômico e físico. Nada que se assemelhe ao processo de estampa, transferência de matéria ou impressão com uma matriz de gravura. Em alguns casos, Bellavinha mexe na segunda tela, quando a pintura lhe pareça desmaiada, necessitar de outra temperatura ou chegar à realização de algum plano arquitetônico. A primeira pintura se faz partindo do excesso, mediante extração das sobras e eliminação do desnecessário. A pintura de trás recolhe a sobra e com ela busca viabilizar-se como pintura, mais que como imagem. Na primeira pintura, feita à vista ou sob a vista, percebe-se a condução do método, a sua realização em pintura. Na pintura de trás, há o acaso que se faz inicialmente mais por cegueira, ou pseudocegueira, já que algo se sabe e preexiste a intencionalidade, mas se nota ainda o movimento dos líquidos, sua mecânica, dinâmica fluida ou o depósito, assentamento da matéria. Algo que se anuncia como estratos arqueológicos. "Eu não me preocupo com o que está atrás, na segunda tela. Até esqueço. Quero o elemento de surpresa. Na medida em que o mistério vai se constituindo, vou sentindo que está chegando a hora de parar."16 Em termos de pintura enquanto espécie de ação sanguínea, Bellavinha está mais interessada na circulação do sangue do que em sua coagulação. Isso também é o sentido da história como se infiltra em sua obra, como uma substância que circula e confere espessura ao presente.
As terras de Minas Gerais são também conhecidas como cromaticamente ricas. Os pigmentos ferrosos da região conferiram o acento terroso da paleta do Mestre Manuel da Costa Ataíde nas igrejas barrocas da região. Desde o segundo pós-guerra, muitos pintores utilizaram pigmentos feitos de terras de Minas Gerais, como Frans Krajcberg, o pioneiro, Manfredo de Souzanetto, Katie van Scherpenberg, Niura Bellavinha e outros. A origem conhecida do pigmento refinado impregna a pintura de certa noção de lugar e de uma tradição histórica da cor, convertendo solo em paisagem. A diversidade do método de pintura de Niura Bellavinha admite ademais a comparação com um modelo de mineração.
Na regência de sua mineralogia, a mostra de Niura Bellavinha apresenta duas faíscas. Entre as acepções de "faísca", no Aurélio, estão “(a) partícula que salta de uma substância cadente ou em atrito com outro corpo e (b) palheta de ouro que se perde na terra ou areias de minas". No primeiro caso, em Ele Passou, as chispas no olhar são produzidas pelo brilho do pigmento feito de pó de meteoro. Esse brilho estelar no campo noturno se faz com centelhas semelhantes às vislumbradas quando se mira um corpo celestial cadente no céu. Os Sabarás constituem a segunda possibilidade. Sua ação pictórica será algo que mais precisamente se classifica como referente à atividade mineradora de faiscar. No Aurélio, faiscar é "procurar faíscas de ouro, ou procurar diamante, em terras já anteriormente lavradas". Assim, o trabalho de Bellavinha é pura faiscação sobre a segunda tela já manchada de sobras de cor da primeira. A ação do artista consiste em buscar nos vestígios de ferro-pigmento-cor algo que se recuperasse como pintura, a partir de algo que se perdeu na superfície da primeira tela depois de lavada.
Nessa espécie de faiscância, as duas finas telas de linho em cada par de Sabarás têm funções físicas de distintos instrumentos de trabalho da mineração. Aqui, pintar é referir-se à cultura mate rial nesse labor. A estrutura tramada do linho, exatamente a mesma nas duas telas, terá funções mineradoras diversas. A primeira tela é peneira, a segunda bateia. A pintura de Bellavinha é uma espécie de lavagem de mineração, garimpo da cor pictórica escondida e abrigada dentro do pigmento puro, seco, às vezes solo de Minas.
Inicialmente, Niura Bellavinha aplica o pigmento na tela para a lavação faiscadora. A primeira tela passa por lavagem a jato d’água e de ar comprimido. No Aurélio, a lavagem é "a separação por meio d'água das partes úteis de um minério" , ou ainda, nas Lavras Diamantinas, o cascalho já revolvido, que se encontra em garimpos mal trabalhados. Peneira, no Aurélio, é "objeto, geralmente circular, com caixilho de madeira ou de metal, com o fundo formado de fios entrançados, de tela, taquara, crina ou metal, e empregado para separar substâncias reduzidas a fragmentos (moídas, britadas, trituradas, etc.), retendo as partes grossas". Assim, a pintura da frente é uma espécie de filtro, de peneira, que, no método pictórico da lavação a jato d'água, deixa passar tinta e pequenos vestígios de fragmento, mas reterá matéria em sua superfície para olhar ou deixará escapar até que a artista defina como concluída sua ação sobre ela. A ação da segunda tela, requisita do Aurélio a descrição de bateia: "gamela de madeira que se usa na lavagem das areias auríferas ou do cascalho diamantífero". A segunda, sendo tela-bateia, recolhe o que havia antes passado através da tela-peneira. A cor peneirada, resultado da distribuição do que passa e não passa pela tela peneira, será garimpada pela bateia.
Se cada tela dos Sabarás encarna seu próprio acontecimento, no entanto, uma pintura de Bellavinha não pode, paradoxalmente, incluir a totalidade do acontecimento, já que em seu processo de pintar, na "segunda tela", há algo que não está, que escapou da pintura. Quando pinta ou fala de pintura, a artista articula a ideia da cor vermelha como ferro nos Sabarás ou o meteorito nas Pinturas Translúcidas. Em detrimento do caráter icônico da imagem, sua pintura afirma a superfície como um lugar concreto do vestígio do referente e do real, seja ferro como ferro, seja o pó de meteoro como presença concreta do asteroide. Se ele passou, seu rastro é luz na memória.
A pintora comprou dois pedaços de meteoros, um caído no Texas e outro na China. Macerou os fragmentos de meteoros para transformá-los em pigmento. Como nos pigmentos vermelhos dos Sabarás, grande parte da composição dos meteoros é também de ferro. Ademais, a pintora agregou hematita e especularita a esse pó de meteoros, com que faria as Pinturas Translúcidas. Os toques de luz, laivos de estrelas, talvez algum deles tivesse um dia iluminado o céu de Guignard.17
Na tradição da pintura brasileira, essa "obscura luz" na obra de Bellavinha emerge de superfícies negras, é uma das características da pintura do período neoconcretista de Hercules Barsotti. Um meneio do espectador lá, como aqui, faz brilhar a superfície escura em pequenos pontos, como estrelas.
Entre as Pinturas Translúcidas, Ele Passou é uma homenagem a um irmão que morreu aos 14 anos. Pouco antes de morrer, ele havia desenhado uma mão que apontava para um cometa no vidro de uma janela. Ele Passou é um conjunto de sete telas de seda transparente pintadas. Nas pinturas seriais, frequentemente, o espectador dever encontrar seu lugar no território visual para realizar seu jogo de espaço e curso temporal. Os chassis das pinturas de Ele Passou são de ferro, formando uma relação entre a rigidez da ossatura estruturante e a transparência da epiderme suporte. Uma faixa preta ocupa a parte central dos primeiros chassis, a metade direita do segundo, um terço da terceira, e a quarta, a tela central, não foi tocada. De modo simétrico e oposto, a estrutura se repete da quinta à sétima. A luz se alcança no centro e se perde na medida que o olhar dele se afasta para a esquerda ou para a direita. O movimento testemunha um corpo caído do céu. Nas áreas negras, o pó de meteoro e especularita rebrilham. O movimento construído pelo conjunto de pinturas se assemelha a uma representação gráfica de movimentos de astros ou funciona como um diagrama do "movimento" cotidiano do sol, tal qual percebido empiricamente, no transcurso do dia.
Essa pintura de Bellavinha remete a um movimento ocorrido na abóbada. celeste, o percurso do astro no firmamento. Nesse sentido, Ele Passou, ainda que disposta em parede reta, descreveria uma curva, aquela do movimento do sol como visto cotidianamente na abóbada celeste. Se algo ou alguém passa, isso é conduzido por nosso olhar. O painel central de Ele Passou seria o zênite desse olhar. Sob sua transparência, vê-se aquele vidro pintado pelo irmão, iluminado. Há algo que se defende aqui da opacidade do mundo. É o lugar da memória, do sonho gravado, da impossibilidade de esquecer, de que trata Gianni Vattimo.
A pintura serial de Bellavinha remete à estrutura de A Queda de Ícaro (1980), de Katie van Scherpenberg, sobre um tema de Pieter Breughel, o Velho,18 e aos sonhos mais ousados do homem. Uma obra de Niura Bellavinha encama o acontecimento "pintura", sendo capaz de transmitir para o futuro o esforço físico (o embate pictórico) no espaço como sensações oferecidas à percepção a partir de complexas operações materiais. Assim, pode reconverter poeticamente um meteoro numa estrela. Se sua pintura é arquitetura, no entanto, cabe convocar o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que dizem que "o monumento não atualiza o acontecimento virtual, mas o incorpora ou o encarna: dá-lhe um corpo, uma vida, um universo. (...) Esses universos não são nem virtuais nem atuais, são possíveis, o possível como categoria estética."19
Diversamente, nas Pinturas Translúcidas, Niura Bellavinha busca sua questão mallamersiana da possibilitação do impossível: pintar com luz de estrelas.
Paulo Herkenhoff
fevereiro de 2001
Notas
1 Paris, Ubrairic Plon. 1956, torno 11, p. 102.
2 Caria ao autor em 3 de fevereiro de 2CXJ1.
3 O assunto foi estudado pelo autor em 'Varejão: A China within Brazil',in 1/Varejão, AmslOrdam, Galeria Barbara Farber, 1992.
4 Op. cit. nota 2 supra. A artista afirma haver colocado essas informações em Iniciação ao barroco mineiro. de Afonso Avita, com colaboração de Cnslina Ávila São Paulo. Nobel, 19H4, pp. 54 c 55.
5 Entrevista ao autor por telefone em 2 de fevereiro de 2001 .
6 Agradoyo a Hoctor Ollea o acesso a sua lese sobre Guimaraes Rosa defendida na Universidade do Texas, em Austin.
7 In Para não csquecer. Rio de Janeiro,Rocco, 1999, p. 103. A artista mencionou ao autor a importância desse texto de Lispector em sou procosso.
8 "Heview of a GroJo Exhioilio'l atlhe Art of This Ce'ltury Galery, a-1d of Mara Martins a'ld Luis Outntanlha' (194), in Perceptions wxJ Judgements 1939- 1940, Chicago, The University of Chicago Press. 1986. v. I, p.210.
9 Op. cn. nota I supra,. p. 103.
lO Trecho do autor extraído de "Varejão: A China within Brazil", op. cit. nota 3 supra.
11 Giulio Cario Argan. The Barroco Age. Nova York, Rizzo11, 1989.
12 Em entrevista ao autor em 23 de janeiro de 2001, Bellavinha reafirma que suas grandes pinturas com olhos, da série Insônia, eram uma homenagem a Guignard e a seus Cristas.
13 Ver do autor "A aventura panar de Lygia Clark- de caracóis, etJcadas e Caminhando' in Lyga Clark.São Paulo, Museu de Arte
Moderna,1999, pp. 1 -65.
14 Op. cit.. nota 1? supra..
15 tb.dem.
16 Ibdem.
17 O autor ubandom a exatidão da descrição astronómica da natureza dos meteoros. para manter o caráter estelar de sua luz segundo a percepção poética e empírica.
18 Nessa obra, composta por quatro painéis, em cada um há uma colagem de tecido de forma idêntica, sempre na mesma posição, havendo uma linha horizontal preta que desce. Na última tela, a colagem está abaixo dessa linha do horizonte. Icaro tombou no mar, caindo no fluxo de nosso olhar.
19 O que 6 a filosofia? Rio de Janeiro, Editora 3o1, 19<J2, p. 229 230.