Textos / Vanda Mangia Kablin, 2004
A cor como poética da construção
A primeira constatação da obra Espelho móvel de Niura Machado Bellavinha, artista que surge nas vertentes da tradição mineira e cuja matriz do fazer artístico está em Alberto da Veiga Guignard e Amílcar de Castro, é a captura da cor em seu estado ainda líquido, nas superfícies ondulantes das águas da Pampulha. Seu corpo de trabalho se processa atrás de um olhar público, registrando no espelho d’água, como uma espécie de catalogação da experiência sensorial, a imersão visual na cor.
O campo cromático é a sua arena de trabalho, reivindicando o olhar do espectador, que faz uma espécie de imersão física nesta acumulação pictórica, como testemunha e parte ativa desta captura geográfica. Neste processo operacional de captura, a cor adquire interioridade, como se contivesse uma espécie de rumor da natureza que só ganha estabilidade e adquire forma ao se concretizar, num segundo estágio, nas ampliações fotográficas, vídeo e filme. É como se a forma líquida, na iminência de uma dissolução, ganhasse assim uma presença permanente.
Nesta primeira fase de orquestração do trabalho, os reflexos e as intensidades saturadas do vermelho aparecem em situações quase limiares, a ponto de se desmancharem, pois a superfície da água associa-se à idéia de elemento de dissolução. A estrutura do trabalho se processa pela acumulação cromática nesse espaço ótico onde os elementos de cor se organizam em linhas verticais; quase uma tela de natureza líquida, fluida, movente, viva, dramatizada pela natureza imanente da impregnação e saturação da cor.
A partir de um ponto focal em uma vista panorâmica do museu de arte da Pampulha, em Belo Horizonte, a artista cria e recria o seu espaço ótico, pinta e esculpe a superfície aquosa em vibração com a saturação da cor – saber se desmanchar, saber se impregnar, este é o modo de funcionamento do seu fazer artístico.
O trabalho da artista também não se origina do espaço silencioso e intimista do ateliê, mas realiza a sua inscrição no mundo em uma esfera pública: ele reivindica a presença física do espectador, como se esta percepção fosse cumulativa para o processo de intervenção espacial e sensorial. Esta necessidade de ser pública – a condição de uma obra que não se origina entre quatro paredes, implica em uma exacerbação simbólica que se manifesta e se materializa neste caráter delicado e efêmero de aparecer no mundo, como se representasse a busca constante de uma arte que aparece e não aparece e que, de repente, neste jogo de oposições, retém uma forma singular de exteriorização.
O trabalho sempre se constitui como um “vir a ser”, tangenciando uma forma, tentando se mostrar como uma experiência, uma natureza fluida, móvel, instável e indefinida nas suas formas e contornos. A cor funciona como um olho exploratório, registrando a intensidade e construindo o espessamento da matéria. Neste processo operacional de captura cromática, o trabalho adquire interioridade, encerra enfim uma forma plástica de pensamento, uma consciência ampliada de sua dimensão artística.
A noção de processo é um fator essencial para a compreensão do trabalho. A cor acontece nesta superfície ainda líquida, de forma ainda tênue, para tornar-se depois mais contundente e dramática: em uma primeira instância, ela se desmancha e assim impregna o mundo ao redor e se concretiza finalmente na superfície da tela. A matéria, de fato, fica apaziguada, enquanto o cromatismo preside os movimentos de sugar, impregnar e de se constituir em matéria pictórica.
A arte de Niura Machado Bellavinha vai ganhando respiração através desses momentos diferenciados. A paisagem é o primeiro foco de atração. A obra sai da natureza – o espelho móvel – para uma imersão monocromática e graças à força desta acumulação pictórica se consolida em diversos meios de expressão, com uma ressonância pública, originando trabalhos independentes e rematerializados em diversos territórios geográficos.
Vanda Mangia Klabin
Curadora
Agosto 2004